domingo, 18 de novembro de 2012

''Era o tempo em que vestia o meu fato domingueiro e ia, nas manhãs em que o sol resistente rompia, ao ritual da saída da missa para te ver.
Deixaste de ir à misa e eu de vestir o meu fato domingueiro.
Sento-me agora nesta pedra a olhar as copas das árvores e a contar as folhas que resistem nos galhos quase nus.
Onde não resistem folhas, ficaram expostos os pássaros.''
''Ainda há folhas secas, amarelas e da cor da argila, que se agarram nos galhos quase nus das árvores. Como se a terra trepasse pelos troncos.
O céu cinzento furtou a cor à terra.O azul ocre. Alguns pássaros continuam a morar nos braços das copas nuas. Nem o vento os arranca aos galhos em prece.
O céu também não quer morrer e agarra-se à terra.
Não enxergo o paradeiro do inferno.''
Epistolário fragmentado.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

E saindo Lázaro de sua tumba, perguntou-lhe Ele:
- Qual de tuas irmãs serás agora?
- Qual de minhas irmãs é a tua preferida?
- A minha preferida é Maria. Mas será Marta quem conceberá do filho do Homem.
- Então, pergunto-te eu. Qual de minhas irmãs me ressuscitou?
. Foi Maria quem me pediu. Mas foi por Marta que o fiz.
- Por Amor dela, ou através dela?
. É a mesma coisa, Lázaro. É a mesma coisa. Se ainda o não compreendeste, continuas agrilhoado à tua tumba.

segunda-feira, 18 de junho de 2012


Cruzei-me então com Lázaro na saída da sua tumba. Se ele saía, então eu entrava.Desejou-me um bom dia, com uma vénia cortês e solícita, eu desejei-lhe uma boa noite.Estendeu-me um maço de cigarros americanos com tanta simpatia que tirei um.Perguntou-me: - Conheces a minha irmã? - Eu não sou de cá. Vou em viagem para Betânia. Mas porque me perguntas? - Porque me pareces aquele que amava a minha irmã. - Sim? E como se chama a tua irmã? - Tenho duas. Queres vir jantar em minha  casa? - Como vês, não me fica em caminho. - Como sabes tu qual é o teu caminho? O meu caminho também foi aquele que agora tomas. E, como vês, estou de regresso. - Mas repara que eu nem posso regressar, porque ainda nem fui. - Mas vem comigo, a minha irmã espera por ti. - Como sabes? - Tu és aquele que amava a minha irmã. - Assim sendo, vou jantar contigo, para ver a tua irmã. E fui. Arrebatado por um desejo incendiado de conhecer a irmã de Lázaro.Disseram depois de mim que ressuscitara Lázaro. E ficou para sempre vazio o lugar que Lázaro abandonara. E eu envelheci ao lado de Maria.Tanto destino que ficou por cumprir.Trago agora entre os dedos um cigarro americano de que desconheço a proveniência.O Amor é sempre um tiro no escuro. A morte um tiro que não acertou no alvo.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O lugar da vida é lugar de morte,
um canteiro encostado junto ao muro
que cerca o talhão que te coube em sorte
Quando te despejaram no escuro.

Vieste inebriado de futuro,
não há já lugar que te conforte.
rompe a onda o caixão do nascituro,
vai velado pela estrela do Norte.

A terra é macia e o mar é duro
e a onda é do vento o contraforte.
Breve a vida é e longa a morte
e tu és o caixão do nascituro.

Num canteiro encostado junto ao muro,
jaz o passado encostado ao futuro.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Será isto, então, o Hades?

Do fundo deste poço, asseveravam, passava-se ao Hades. Águas sulfurosas e fétidas, mas límpidas, como o mais puro cristal. No mais profundo, todavia, onde a luz não alcançava, era breu.
Verdade era que, de todos os que mergulharam antes de mim, nenhum regressara. Não restava pois dúvida, do fundo daquele poço passava-se ao Hades. E, como ninguém conhecia o fundo daquele poço, que o breu da profundidade não tolerava o alcançar com o olhar, tão só se sabia que, em qualquer lugar, havia que encontrar uma dissimulada passagem entre o lajedo.
Mergulhei, pois, e todos me olhavam como se tivessem acompanhado o meu fétero ao sepulcro. Beijaram-me na face e desejaram-me gloriosas façanhas.
Chegado ao fundo, a procura foi serena e meticulosa, mas não havia brecha por onde me furtar àquela clausura. Então, prostrado e extenuado já, sem forças para emergir, deixei que a água me entrasse pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. E foi como se regressara ao ventre de minha mãe e mergulhasse de novo nas águas amnióticas.
Agora, de súbito, reencontro-me de novo entre vós.
Será isto, então, o Hades?

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Passio


Passio

E durou a minha paixão
o dobro dos passos
do que dias devassos
a minha criação.

E veio a mim Verónica
a limpar-me o rosto.
E logo o estertor.
Mais não diz a crónica.
Senão que ao sol posto
me vieram depor.

Onde os outros passos?
Ai! Que já nem sei!
São efémeros traços
que já apaguei.

De Verónica o sorriso,
do retrato a mortalha.
E o resto inciso
no reverso da medalha.

Tão só a piedade
de um afago breve,
Entre o rito da vaidade
e um ai que me leve.

O mistério, irmã, reside no sopro do teu nome.

E naquele tempo diluíra-me já no caos de todos os seres animados e inanimados que me rodeavam, perdera a memória do meu nome e das letras com que se escrevia, dos sons com que se gritava e nem quem assobiara a minha senha despertaria uma breve e instantânea emoção. A minha identidade diluíra-se e era tudo o que no horizonte o olhar alcançava. E encontrava-me na iminência de nem me poder resgatar. Já não era eu, era tudo.
E subi à montanha. Sentei-me no seu cume e inspirei todo o ar, quase rarefeito, que meu peito pudera conter. E retive-o até que todo o meu corpo parecia já estourar. Quase podia ver o rubor na minha face.
Então expeli o grito, articulando o meu nome. Repeti-o três vezes. E surpreendi-me com ele. LÁÁÁÁ ZAAAA ROOOO!
E desfaleci.
Quando despertei, a brisa matinal soprava-me os cabelos. O rio Jordão serpenteava reflectindo o fulgor rubro do sol rompante.
Eu sou LÁZARO, resgatei o meu EU. Aterrorizava-me que pudesse recordar o caos por onde andara perdido e despojado de mim.
Veio ele então dizer que me ressuscitara e me furtara ao sarcófago. E vou eu contradizê-lo? Não, irmã, se o contradissera teria que te responder quando me viesses perguntar como fora a morte.
Acredita então em que morri e em que ele me devolveu a vida. Porque, assim sendo, o pânico inibir-te-á de quereres saber.
Mas quando sentires, irmã, que ninguém te resgatará senão tu, então discorrerei fluentemente sobre a morte e a ressurreição.
Até lá, peregrinarás cativa da tua ausência de ti e da sua mentira. Aguardando também que ele venha para te resgatar.
O mistério, irmã, reside no sopro do teu nome.

quinta-feira, 31 de março de 2011

De Lázaro após a ressurreição.

O que eu vi do lado de lá não é narrável.
Terás que aguardar que surja um homem que falará por mim.
O seu nome será Alighieri.
Mas falará do que nunca experimentou.
Mantem-te pois serena, que não há razão para temer.
Por lá está-se bem. Fui condenado a regressar.