terça-feira, 26 de julho de 2011

Será isto, então, o Hades?

Do fundo deste poço, asseveravam, passava-se ao Hades. Águas sulfurosas e fétidas, mas límpidas, como o mais puro cristal. No mais profundo, todavia, onde a luz não alcançava, era breu.
Verdade era que, de todos os que mergulharam antes de mim, nenhum regressara. Não restava pois dúvida, do fundo daquele poço passava-se ao Hades. E, como ninguém conhecia o fundo daquele poço, que o breu da profundidade não tolerava o alcançar com o olhar, tão só se sabia que, em qualquer lugar, havia que encontrar uma dissimulada passagem entre o lajedo.
Mergulhei, pois, e todos me olhavam como se tivessem acompanhado o meu fétero ao sepulcro. Beijaram-me na face e desejaram-me gloriosas façanhas.
Chegado ao fundo, a procura foi serena e meticulosa, mas não havia brecha por onde me furtar àquela clausura. Então, prostrado e extenuado já, sem forças para emergir, deixei que a água me entrasse pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. E foi como se regressara ao ventre de minha mãe e mergulhasse de novo nas águas amnióticas.
Agora, de súbito, reencontro-me de novo entre vós.
Será isto, então, o Hades?

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Passio


Passio

E durou a minha paixão
o dobro dos passos
do que dias devassos
a minha criação.

E veio a mim Verónica
a limpar-me o rosto.
E logo o estertor.
Mais não diz a crónica.
Senão que ao sol posto
me vieram depor.

Onde os outros passos?
Ai! Que já nem sei!
São efémeros traços
que já apaguei.

De Verónica o sorriso,
do retrato a mortalha.
E o resto inciso
no reverso da medalha.

Tão só a piedade
de um afago breve,
Entre o rito da vaidade
e um ai que me leve.

O mistério, irmã, reside no sopro do teu nome.

E naquele tempo diluíra-me já no caos de todos os seres animados e inanimados que me rodeavam, perdera a memória do meu nome e das letras com que se escrevia, dos sons com que se gritava e nem quem assobiara a minha senha despertaria uma breve e instantânea emoção. A minha identidade diluíra-se e era tudo o que no horizonte o olhar alcançava. E encontrava-me na iminência de nem me poder resgatar. Já não era eu, era tudo.
E subi à montanha. Sentei-me no seu cume e inspirei todo o ar, quase rarefeito, que meu peito pudera conter. E retive-o até que todo o meu corpo parecia já estourar. Quase podia ver o rubor na minha face.
Então expeli o grito, articulando o meu nome. Repeti-o três vezes. E surpreendi-me com ele. LÁÁÁÁ ZAAAA ROOOO!
E desfaleci.
Quando despertei, a brisa matinal soprava-me os cabelos. O rio Jordão serpenteava reflectindo o fulgor rubro do sol rompante.
Eu sou LÁZARO, resgatei o meu EU. Aterrorizava-me que pudesse recordar o caos por onde andara perdido e despojado de mim.
Veio ele então dizer que me ressuscitara e me furtara ao sarcófago. E vou eu contradizê-lo? Não, irmã, se o contradissera teria que te responder quando me viesses perguntar como fora a morte.
Acredita então em que morri e em que ele me devolveu a vida. Porque, assim sendo, o pânico inibir-te-á de quereres saber.
Mas quando sentires, irmã, que ninguém te resgatará senão tu, então discorrerei fluentemente sobre a morte e a ressurreição.
Até lá, peregrinarás cativa da tua ausência de ti e da sua mentira. Aguardando também que ele venha para te resgatar.
O mistério, irmã, reside no sopro do teu nome.